Desde aqueles traços horizontais largos de alguns anos atrás, o percurso do desenho de Célia Euvaldo é o de se levantar e tomar corpo. Porque eram traços volumosos, massivos, que não se põem em pé facilmente. Agarrando nas bordas do papel ou em algo além delas para evitar cair, era como se estivessem experimentando uma força que até então desconheciam – a superfície do papel não servia mais de apoio nem de fundo tradicional que sustentava a figura. Um tônus incomum e inédito era transferido ao desenho e o levou a dimensões surpreendentes. Porque pode parecer que, sendo apenas desenhos, não exigem nenhum esforço de vulto. Desenhar, para muitos significa descansar e até aquele que desenha, enquanto fala ao telefone, por exemplo, “descansa” mentalmente – o “trabalho” da repressão sobre o inconsciente diminui. Estes desenhos, percebe-se, exigem um esforço intenso, cansativo, trabalhoso mesmo. Abdicam daquele espaço íntimo e afetivo onde o desenho costuma se situar. Espaço quase sempre de indecisões, de pudor, de confissões ou observações, da franqueza significativa ou casual. Não sendo comentário escapista, anotações da intimidade nem descargas incontroladas inconscientes, esses desenhos demonstram uma performance do vigor e da energia muscular desenvolvidos, concentrados e coordenados. Mas, tal como – são os exemplos que me ocorrem – na dança “quebrada” de Merce Cunningham ou na prosa “ignorante” de Gertrude Stein, exibem uma desenvoltura desrítmica intensa.
São movimentos que se dão num andar rápido, sem indecisão, arrastado pelo chão e parecem utilizar um sistema de peso e contrapeso descoordenado, porque muitas vezes o centro de gravidade está aparentemente deslocado, puxando para outro lugar; eles que vão e também querem voltar. E se digo “eles” como se me referisse a entidades autônomas, penso não estar enganado. Porque esses desenhos testemunham uma presença inteira, grande, pesada, maior do que nós sem dúvida. Uma presença que certamente não é uma figura, objeto, imagem e sim a evidência de uma corporeidade muito tangível no que ela tem de ilógico, tenso, imprevisível, descontrolado. Freud disse que o inconsciente é como um cavalo; às vezes ele nos leva aonde queremos ir, outras nos leva aonde quer ir. Ao transferir tônus para algo inerte, Célia se viu também diante de uma presença potente que resiste e se impõe à desenhista, por vontade própria e por tamanho.
Trata-se de um movimento que arrasta uma referência importante do desenho moderno brasileiro. Pois é como se Célia rompesse a coesão lógica dos desenhos de Amilcar de Castro – um artista com quem tem afinidades bastante visíveis. É então como se um desenho do Amilcar se pusesse a pular numa cama elástica; jogado para o ar, sobe, cai, e precisa retomar o tônus para subir de novo, desequilibrado e sem ponto de apoio. Não há mais chão nem equilíbrio possíveis e só tensionando a si próprio pode perceber-se como corpo inteiro e consistente.
É significativa esta proximidade com os desenhos de um escultor – colocar algo de pé ainda é uma das tarefas do escultor. Célia também precisa colocar em pé o desenho no papel, levantar quase um corpo físico. Isso requer toda uma intensidade que vai muito além do simples toque da tinta no papel. A isso não podemos mais chamar de pinceladas. O desenho corresponde a um todo de um gesto só e de um mesmo e único movimento, inteiro e quebrado. Deve aparecer de imediato, numa ação que só pode se efetivar em uma distância mais afastada que a proximidade que a pincelada exige – num campo visual mais amplo onde domínio do olho e a certeza da continuidade olho/mão já não estão garantidos. Aí o olhar por si só não mais se impõe, domina e controla as coisas. Mais afastado do olho e mais próximo do corpo, desenhar é agora se mover, levantar, se abaixar, andar, recuar. E o desenho também anda, levante, recua, se afasta. É preciso acompanhá-lo aonde ele quer ir e não.
Texto publicado no catálogo Célia Euvaldo, Marília Razuk Galeria de Arte, 1996