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O que está aqui é que antes não podia estar?

Marco Mello

2008

Entre nós


Eu nunca olhava para onde devia olhar, me diziam. Acho que eles tinham certa razão. Estava sempre perseguindo um lugar entre o livro e a caneta. Entre a escola e a casa. Entre um mundo e outro. Com o tempo a palavra “entre” se tornou o meu terror: profetizavam que, de tanto ficar entre as coisas, acabaria no entretanto. Entre – retrucava meio moleque – é um convite.


Não consegui perder o cacoete, mas fiz do intervalo uma ordem de mundo, uma chave para ver, para entrar nele. O mundo, esboçava no meu canto, é uma extensa superfície, uma superfície com superfícies; se existem superfícies, é que existem, entre elas, fronteiras e relevos – essas realidades eram essenciais para o sentido da minha ordenação. O universo é finito, continuava, mas expansivo. Ele se reconfigura sempre. Faz a si próprio e se refaz. E como explicar esse movimento de sempre se colocar diferente, de inaugurar incessantemente novas realidades? A probabilidade estava justamente nas fronteiras, os limites daquelas superfícies referidas. As margens configuram uma individuação, mas as coisas podem se aproximar, formando grupos, contextos, classes, enfim, constituir um plano comum. E estando elas em uma mesma superfície – uma superfície é um espaço de passagem –, seus componentes acabam por se relacionar entre si e perfazem constantes trocas de suas substâncias: as cores se combinam, os líquidos se misturam, as pessoas se permutam, embaralham, emaranham. A criação, a reconfiguração incessante do mundo, instaurava-se, assim, em meu mundo, a partir desse jogo entre diferentes; surgia, não no âmbito das coisas, mas no seu intervalo, no espaço entre. Mas, ali, o entre não era um espaço que existia previamente, se existisse ele seria não um campo do devir, mas uma realidade própria; “entre” era, e é, um território da ação. Um território que a ação institui.


O tempo trouxe novas complexidades à minha leitura do mundo, mas seus fundamentos se mantiveram. Fiz dela um princípio para pensar a arte. A arte é uma superfície originada no intervalo de uma dimensão sagrada, constituída pelo plano de imanência e a superfície desse mesmo plano. Uma superfície que se comporta em permanente estado de tensão. Suas características temporais estendem relacionamentos com o mundo comum, enquanto suas qualidades de transcendência impedem que as duas superfícies possam se fundir. Tal como a superfície do mundo, a arte se projeta em expansão; uma dilatação, igualmente, alcançada a partir de distâncias inventadas entre realidades: a pintura nasce quando se estende uma superfície comum, que possibilita ao desenho jogar com o desenho; a pintura abstrata é uma realidade constituída entre a pincelada e a pincelada; o objeto é um acontecimento entre a tridimensionalidade real do quadro e a escultura; Duchamp é um lance entre o plano de imanência e o âmbito da arte; a arte minimal é uma espacialidade entre o âmbito do mundo e o espaço inventado por Duchamp.


Cada realidade da arte, cada poética é uma ordem criada entre o quadro de referência da arte e o quadro de referência em geral, ou, colocado em outros termos, entre a superfície do mundo e a superfície da arte.


No território da arte é importante apontar duas espécies de práticas: uma instaura novas realidades, e assim amplia o campo de domínio. Outra simplesmente confirma a espacialidade já existente, e assim se coloca em um campo de pertencimento. Esta não cria, no sentido preciso da palavra, nenhuma nova realidade. Simplesmente alonga um feito existente. A primeira não advém de uma extensão do quadro cultural; ela não é cultura, ela nasce exceção. É extraordinária. A outra se faz dentro dos limites dados pelo quadro de referência, é um ordinário do extraordinário.


A realidade do artístico, não de seus subprodutos, é sempre da ordem da distância. O artístico se faz especial escapando do plano de imanência e das realidades que anteriormente constituiu. Mas é uma natureza de distância estirada. A arte necessita de longitude, só que para isso precisa desenvolver proximidade com o mundo, para fugir do que ela própria já realizou.


A realidade da arte envolve distinção. E não basta que a prática se faça diferente. A ação precisa fazer ver um outro e a si mesma. Necessita distinguir e se distinguir. Assim, o jogo de realização do artístico deve inventar um se mostrar a ver para um outro que ainda não está no quadro de suas referências, e um ver para si mesma, para que a realidade do que ela própria inventou não se confunda com realidades que, porventura, se apresentem, assemelhadas, na superfície do mundo. A arte faz ver, mas faz ver em seu próprio contexto – faz ver como arte. É uma dupla natureza do ver.


Na arte, o ver que me interessa é o ver que se faz realidade, a exceção. É por essa lente que vejo as obras. E é por essa radicalidade que procurarei mostrar outra radicalidade, o fazer ver que a artista Célia Euvaldo instaura.


Passagens


O início desta narrativa está – como não podia deixar de ser – nas dobras deste livro. Uma genealogia dos desenhos de Célia Euvaldo mostra que eles primeiro se fizeram como elementos tridimensionais e só em seguida radicaram no espaço plano. Talvez essas obras não sejam compreendidas como imprescindíveis, e por isso elas não têm destaque aqui. Entretanto, como já estão presentes nelas elementos que se mostraram determinantes na poética de trabalhos considerados fundamentais, esta história reclama a sua participação, para que elas possam dar seu testemunho.


Antes de se dedicar ao desenho, Célia Euvaldo realizou três instalações. As obras foram apresentadas em Paris, em 1985; no Rio de Janeiro, em 1988; e por fim em São Paulo, em 1989. Os trabalhos eram confeccionados com elementos similares e proporcionavam questões bastante semelhantes. O que tínhamos era um acontecimento envolvendo o espaço – os cilindros de luz e o espectador –, configurado de tal modo que prometia ao público uma vivência poética a partir de seu interior. Era, basicamente, uma pontuação espacial, efetivada por uma disposição em linhas, de tubos de néon. As lâmpadas, suspensas à altura dos olhos do público, diziam estar ali se exibindo para ele, o espectador. Isso fazia a diferença. Só os conheci por fotografia. Mas não acho impossível imaginá-los, tampouco me imaginar em seu interior. A altura das lâmpadas não era só forma de se referir à nossa presença, mais do que isso, a nossa presença era essencial na trama. O espectador devia embrenhar-se em seu interior e vivenciar as experiências que ali eram descortinadas.


Esses foram os únicos trabalhos em que a artista explorou o espaço tridimensional. Curiosamente, o abandono ocorreu no momento em que a arte brasileira redobrava seu empenho pela escultura e se abria justamente para as instalações. No período, também se desenvolveu um crescente interesse do cenário internacional pela produção de Hélio Oiticica e de Lygia Clark, e por aqueles artistas que pareciam desdobrar essa tradição – entendam-se aqui obras que apresentavam uma natureza interna, que afirmavam ser dotadas de valores de interioridade. Em síntese, o momento que se delineava era bastante promissor para que a artista desse uma continuidade a sua pesquisa. Ainda assim, ela mudou os rumos de seu trabalho.


Na conjuntura em que a artista exibiu as suas instalações, o público, pelo menos aquele que freqüentava mostras contemporâneas, não respondia, como se fosse um disparate, ao fato de as obras de arte recorrerem a matérias embaladas em história, a componentes industriais, a qualidades imediatas, à própria participação do espectador e a uma espacialidade não restrita ao âmbito interno das linguagens tradicionais. A instância da arte, por intermédio de obras relativas ao cubismo, ao ready made, à arte minimal, à arte pop, ao Fluxus, ao pós-minimalismo, e a outras superfícies artísticas, havia ampliado as suas fronteiras, estendera seu domínio para uma jurisdição que até então pertencia exclusivamente à nossa vida. Entretanto, o inverso também era verdadeiro. Cada uma daquelas conquistas plásticas estava agora presente em nosso quadro de referência, disponível para ser utilizada por nós no recinto do mundo, em outros jogos, como publicidade, propaganda, entretenimento, política.


A arte e a vida, em grande parte de suas superfícies, haviam se sobreposto uma à outra, de modo que suas arestas se revelavam como pontos de passagem para efusão de relacionamentos. As fronteiras estavam aplainadas e o espectador podia se deslocar de um mundo para outro sem grandes sobressaltos, sem trauma. Sabia objetivamente o que pertencia a um e o que pertencia a outro, e quais comportamentos eram adequados em cada um desses contextos.


Célia escolheu uma das passagens que aproximava arte e vida. Elegeu uma superfície que abrigava componentes industrias, que mantinha relacionamento com a espacialidade imediata do mundo e suportava a presença do espectador. Havia uma tônica minimalista em suas obras. O fazer era simples e corriqueiro, e fugia a qualquer expressividade. Por intermédio dessas instalações, buscava-se uma disposição onde as coisas poderiam se comportar tal como realmente são em nossas vidas. As obras não alimentavam qualquer espécie de fantasia. Seu interior não era promovido a um estado fantástico, as luzes que se manifestavam das lâmpadas não proporcionavam um caráter fantasmagórico ao ambiente. Tampouco o espaço se dizia regressivo, com uma interioridade protetora. Era só um espaço pontuado por lâmpadas que se desenhavam em seu interior.


Os trabalhos de Célia se exibiam afinados ao contexto contemporâneo, efetivamente compunham uma poética dotada de uma natureza semelhante a nossa vida imediata. Apoiadas na realidade de seu mundo, a arte, as obras descortinavam suas peculiaridades. Para usufruí-las o público deveria desenvolver uma forma de agir apoiada no ver: ver o desenho que as lâmpadas perfaziam no espaço. Os tubos de néon, elementos de uma cotidianidade absurda, tinham sido alçados, junto com o próprio espaço, à condição de protagonistas de um acontecimento.


O curioso é que o público aceitava essa proposição sem qualquer estranheza, sem sentir qualquer desconforto. Como se isso fosse uma situação absolutamente normal. Como se fosse natural ele estar imerso no mundo na condição de coisa, igualado a um espaço físico, a tubo de néon, a paredes. Talvez esse sentimento ocorresse porque efetivamente esta é a condição que ele ocupa no seu próprio mundo. Entretanto, em seu mundo ele vive, aqui a ordem de mundo é do ver.


Imaginem a seguinte situação: viajo para um outro país, para um lugar onde nunca fui, e lá encontro exatamente tudo o que me cerca, as mesmas comidas, os mesmos restaurantes, as mesmas lojas, os mesmos costumes, os mesmos hábitos, a mesma arquitetura, os mesmos carros, as mesmas músicas – não há como não sentir desconforto em ver tudo aquilo que eu vivo. Fico incomodado, mas vejo o que antes não via. No entanto, ao viajar para ver algo já previamente determinado, já não é mais possível ver, eu só vivo. Quando o ver já está colocado antecipadamente para ser visto, o hábito já se instalou. Não se vê mais, vive-se.


Se o público vivia a instalação de Célia, era porque essa natureza do ver já existia em seu quadro de referência. Ele já havia aceitado o fato de que um produto artístico poderia se valer dos objetos, do espaço e do tempo, portanto, empregava o hábito para ver – um ver do hábito. E como não havia nesses trabalhos nenhum novo relevo, nenhum obstáculo, nenhuma realidade que se impusesse à realidade do hábito, era natural que a ocorrência artística fosse vista não em sua estranheza, não por sua espessura nem pela força de realidade de um ver que se faz pela primeira vez, mas apenas como um episódio relativo ao campo do desenho – de tangentes que trafegam em algum ambiente físico.


Sem dúvida essas instalações pertencem ao contexto da arte, mas elas próprias não constituíam nenhum novo contexto, só dilatavam uma superfície que avançara suas fronteiras através de outras obras.


Nesses trabalhos é possível ver as dificuldades que o contexto contemporâneo reserva aos artistas e a complexidade que o jogo da arte demanda, entretanto, eles foram requisitados nesta seção porque é de seu desdobramento que a poética da artista procede. O tempo faz que as rupturas não se mostrem tão drásticas. Vistos por suas balizas, os cortes dão lugar a continuidades. Por que não pensar a sua posterior incursão pelo desenho como algo relacionado às instalações? Por que não ver que as relações tecidas pelos tubos de néon com o espaço físico ambiental são da mesma ordem de afinidade que o relacionamento que uma linha mantém com a superfície de um papel? Por esse prisma, as instalações também são desenhos. Um desenho dotado de espacialidade similar à apresentada pelo espectador. Célia Euvaldo em suas ações posteriores estendeu uma superfície entre as obras tridimensionais e seus desenhos. Uma superfície que possibilitou a ela deslocar para o espaço do desenho toda uma série de preocupações e experiências que conjugavam arte e realidade.


Entre tantos


Os desenhos vieram das instalações. De acordo com a artista, o primeiro desenho foi realizado para representar uma daquelas obras. Após sua feitura, ela constatou que o desenho manifestava valores próprios, apresentando autonomia em relação ao que deveria representar. Assim nasceu a série.


A natureza dessa nova existência, já em seu início, contava com elementos da convicção poética dos trabalhos tridimensionais. Os desenhos dispunham-se como linhas, quase sempre horizontais e acomodadas serialmente – exceto quando se faziam circulares. Eram linhas que não encerravam interiores, não instituíam qualquer gravidade interna. A artista preocupava-se em conotar que toda a sua ação era de fazer linhas que se mostravam como realmente são: simplesmente linhas. Não há aqui uma espécie de expediente de tradução, amoldando feitos no âmago de uma outra linguagem?


Chamei de linhas, mas seria mais correto chamá-las de rastros. Rastros, porque efetivamente não se sabe bem a sua natureza. Não se pode precisar se são linhas ou pinceladas. É só uma impressão com cor quase sempre preta, alguma branca, sobre a superfície de uma folha a partir de um movimento único, contínuo, com o pincel.


Com base nesse ato a artista desdobra um vasto repertório de variações: somente um traço no centro da folha; três ou quatro traços equidistantes entre si; opõe um no alto, outro embaixo; faz os traços tomarem sentidos contrários; realiza rastros circulares. A ordem dos desdobramentos é extensa e novas regras para abrir novos campos de variações estão sempre surgindo. A mão pressionando e aliviando a pressão em seu trajeto sobre o papel. A superfície da folha de papel em que o pincel embebido em nanquim trafega é umedecida. Estende métricas folhas sobre o chão e perfaz um traço em movimento contínuo até a tinta rarear. A opção pelo uso do pincel relaciona-se a essas variações. O pincel e as tintas promovem vestígios mais passíveis de marcar diferenças. É por intermédio deles que reconheço, mais claramente, o empenho empregado pela artista.


E qual é esse empenho? Fazer ver uma linha simplesmente como linha. Um traço somente como traço. Um desenho na sua radicalidade de desenho. Parte do que significa esta formulação, nós já tratamos. É um traço que não faz ver qualquer outro, que não se confunde com nenhum outro. Um traço que afirma exatamente a sua realidade imediata. O mesmo postulado das obras tridimensionais: ser somente o que se é.


Desse postulado abre-se uma outra questão: se os ditames daquela poética se apoiavam na existência de uma condição objetiva das lâmpadas e do espaço, a mesma condição não deveria ser exigida do desenho? Se necessário, como saber que o movimento que faz o traço repousa exclusivamente nessa vontade? A introdução deste problema obriga que a atuação artística mude sua trajetória em um giro de 180 graus. Se o primeiro item trata do ver, o segundo dispõe sobre a qualidade do ser. Em síntese, a ambição da artista é realizar um traço que se objetive na vontade exclusiva de fazer um traço e que, além disso, se mostre simplesmente como um traço. A dificuldade dessa pretensão não é constituir um traço produzido somente pela vontade de fazê-lo ou realizar um traço que se mostre só um traço, é fazer conciliar essas duas arestas, e ainda elaborá-las de modo a se tornarem especiais.


Se a intenção da ação faz parte da natureza desses desenhos, é obrigatório que a realidade corporal da artista esteja à vista. Uma visibilidade não de suas idiossincrasias, de seus dramas particulares expressados por meio de gestos, mas da própria ação. Isto para que se possa inferir que esses desenhos se originam de uma prática calcada exclusivamente no intento de fazê-los desenhos. De fazê-los esses desenhos.


A verdadeira natureza intencional de uma ação só pode ser dita por quem a faz. Célia almeja que seus desenhos forneçam esse testemunho. A estratégia utilizada por ela, para isso, é manter o pincel embebido em tinta, em contínua aderência, deslizando sobre a superfície do papel, em compasso com o seu movimento corporal, até que este, o movimento, se complete. Confeccionados de tal modo, os desenhos realmente são rastros (e é por isso, também, que deveríamos chamá-los de rastros): eles se comportam como se fossem vestígios da ação da artista.


Se há vários pontos de afinidade entre as instalações e os desenhos, um os distancia muito: a ênfase no fazer. Nas primeiras, o fazer era quase um acontecimento marginal. Quanto aos desenhos, nada é externo ao fazer. Exceto as regras desse específico jogo poético, não existe nenhuma realidade que anteceda a eles. E nem poderia existir; se assim fosse, como seria possível dizer que esses traços se fazem da própria expressão de fazê-los? Se eu tomar um outro traçado já existente e fizer dele modelo para figurar, não é o traço apresentado que estou fazendo ver, mas o modelo do traço. Da mesma forma, se me aproprio de uma linha já existente, como foi feito com os tubos de néon, e a apresento, estou fazendo ver uma outra linha. De modo que esses desenhos estão condenados à órbita do labor. Eles só podem existir pela prática do fazer, pelo exercício de realizá-los.


Há uma premissa, na imaginação desses desenhos, que a linha, o traço, o desenho repousam em nosso quadro de referência com a mesma qualidade da mesa, da cadeira, da casa, da bola, o que me permite reportar à condição de objeto da linha, do traço, do desenho. Entretanto, se posso desenhar uma bola, se é possível fazer da linha uma casa, do traço uma cadeira, posso mostrar uma linha por meio de uma linha, um traço por intermédio de um traço? Sem dúvida; desde que separe as ações de fazer ser e fazer ver, ou melhor, desde que elabore um modo que possibilite às duas ações se mostrar em uma mesma realidade, sem que sejam confundidas entre si. É isso que a artista almeja e é isso que ela alcança por meio desses desenhos. O ver da ação se faz ver nesse se mostrar preso ao corpo da artista; o ver do se mostrar como se faz ver na forma que ele obtém, não se mostrando como nenhum outro.


Há uma radicalidade em fazer ver um desenho na condição de desenho, que não se faz presente em fazer ver uma bola na condição de desenho. A segunda está envolvida pelo hábito. A primeira não, ainda está envolta no estranhamento. Realmente esses desenhos têm faculdades especiais, podem se tornar realidade: podem se fazer arte.


Por que uma ação tão imediata como o desenho se amarra em tanta dificuldade? A naturalidade do desenho e o anseio por qualidades imediatas do mundo não licenciam a arte de se ancorar no juízo. A poética contemporânea sabe que não goza de nenhuma condição especial. O artista já não é mais um ente previamente especial. Os materiais que a arte trabalha já não têm qualquer distinção das demais existências. Outrora se escolhia um material pela sua condição de virgindade – um bloco de pedra ou de mármore, ou tintas –, o artista só poderia constituir uma existência se não houvesse uma anterior. Nossos tempos dotaram qualquer evento, fato, objeto, acontecimento de história. Nesse contexto, Duchamp prognosticou um gesto em sentido radicalmente oposto, anulou toda a história que os produtos humanos até então exibiam, tornando possível realizar arte com qualquer coisa. Assim como tudo pode ser história, tudo também pode ser arte. Desde então, qualquer gesto, por mais banal que seja, pode se transformar em arte. É natural que seja assim e tem que ser assim. Este é um mundo prosaico, um mundo de banalidades. Lidar com ele de outra maneira é como roubar no jogo. De modo que estamos condenados a essa prisão do possível. O absurdo é que na esfera onde tudo se torna possível uma coisa parece se mostrar como impossível: justamente a possibilidade. Ora, se a arte é um predicado, portanto uma distinção, e se invoco esse atributo porque vejo uma determinada qualidade em uma ordem de coisas que as torna radicalmente distintas de todas as demais coisas, como é possível que o predicado possa existir sem que eu realize distinções? Muitos esquecem esse panorama contemporâneo e atribuem a qualquer coisa a capacidade de ser arte, como se eles fossem sujeitos especiais previamente escolhidos pelo divino para dar sentido ao mundo. Solicitam que tenhamos fé para que vejamos o que eles querem fazer ver. Mas o mundo não se funda sobre um sistema de fé, e sim se estrutura sobre um sistema de crença. Crença é uma fé justificada. Assim, pouco importa se um trabalho possa ou não ser ungido ao grau de arte. O que realmente interessa é como diante do contexto contemporâneo os artistas agem de modo a tornar possível aquilo que se mostrava como impossível.


Os desenhos de Célia parecem ruminar as dificuldades da vida contemporânea, estão sempre buscando encontrar justificativas para cada uma de suas ações, de seus movimentos. Os seus desenhos vivem em um mundo da indistinção, um mundo prosaico, uma vida banal, uma existência sem sentido, um mundo de superfícies. Um mundo equivalente ao nosso. Esta é a única crença possível de ser mantida. O corpo da artista é a realidade de passagem entre as fronteiras, ela perfaz um gesto na superfície de seu mundo, um gesto ensimesmado, e o desenho agarrado na sua própria superfície responde. Como não podia deixar de ser, é um gesto simples, indistinto, ausente de virtuosismo, sem heroísmo, uma ação fundada no labor, no hábito, na repetição. Ela executa outro com a mesma natureza e o desenho responde no mesmo tom. Assim se fazem os desenhos de Célia Euvaldo. É para esses desenhos que ela reclama o estatuto de arte.


É um jogo que joga com paradoxos: invoca-se a indistinção para alcançar a diferenciação extrema, a condição de arte. E com ações contraditórias: se aceito a natureza prosaica do mundo, por que me preocupar em instituir qualquer distinção? Adianto a resposta: tornar visível a natureza do banal é dar realidade a ela. A arte é um jogo de fazer ver, e ao fazer ver ela torna visível uma vida que antes não poderia existir. Ela funda uma existência. A questão é como tornar distinto o indistinto? Como destacar o que não se destaca?


O sistema de regra existente se constituiu de modo a ajuizar a distinção: dos grandes gestos, das ações carregadas de sentidos, de finalidades, de determinação, de potência; em seguida, passou a ver o seu oposto pelo prisma de suas regras. Por esse balizamento o comum passou a ser visto pelo que de incomum havia nele, por aquilo com que ele se parecia ou de que se distinguia. A distinção do comum repousa numa ordem estranha a ele.


O ver reclamado por Célia Euvaldo quer fazer ver por um outro ângulo. Ela não quer mostrar que uma simples linha tem a potência de construir, realizar, de mostrar-se bela, de encantar, ser inventiva. Essas realidades já estão em nosso quadro de referências. A artista quer nos fazer ver que uma coisa pode existir sem ser nenhum outro, sem parecer com outro, sem as qualidades de outro. Existir por ser unicamente ela mesma. É por isso que seus desenhos estão sempre agarrados ao plano do papel, quase sem acontecimentos, quase sem ação, perto da ausência de sentidos, quase sem existência; eles são somente o movimento que os realiza.


Indubitavelmente os desenhos de Célia Euvaldo fazem ver um indistinto se mostrando em sua indistinção, ou seja, um traço que se mostra na sua radicalidade de traço. Entretanto, nada me assegura que o que ela me apresenta seja a verdadeira expressão do banal e não a mera expressão de um momento banal. Além disso, quem me garante que a eleição desse ordinário não foi um ato arbitrário? Inquirir os desenhos por esse ângulo expõe seu ponto de fragilidade. Eles não carecem de radicalidade, são ambiciosos e conseguem seu intento: fazem ver um traço que se objetiva na vontade exclusiva de fazer um traço e que, além disso, se mostra simplesmente como um traço. Não precisam tampouco da capacidade de formalizar, eles realizam o que parecia impossível realizar: separam, e depois juntam, uma ação do se mostrar de uma ação. O que eles se ressentem é de uma ordem contextual própria. Um contexto que me permita ver um ordinário em seu próprio mundo.


O fato é que na ausência dessa estrutura a poética expulsa pela porta da frente a figura do artista como um ente especial, e ela retorna pelos fundos: os desenhos se fazem exclusivamente da vontade de elaborá-los porque a artista assim determinou; eles são prosaicos porque repetem os gestos da artista; eles estão aqui porque foram escolhidos por ela.


É por isso que esses desenhos precisam tanto estar acompanhados uns dos outros, precisam estar sempre entre, em coletividade, repetindo as mesmas ações, ou os mesmos gestos. O coletivo instaura uma dimensão comunitária, faz ver a presença de um mundo, ainda que um mundo com crostas frágeis, na iminência de ruir.


Entre a superfície e a superfície


Em 1998 a artista transferiu sua ação do papel para a tela e o trabalho impôs uma nova maneira de ser olhado. Em verdade, várias alterações que as telas mostravam haviam sido iniciadas em trabalhos anteriores. Célia Euvaldo já havia passado a trabalhar com grandes áreas de papel e mudara sua gestualidade. Servia-se de novos apetrechos para realizar seus rastros, que lhe proporcionavam gestos mais largos, mais espessos, visualmente mais velozes, e, principalmente, eles pareciam adquirir uma corporeidade própria. O passo seguinte foi dispô-los verticalmente sobre a superfície do papel, deixá-los em pé, eretos. Essa arrumação alterou o eixo de gravidade dos desenhos. Anteriormente, a força gravitacional se localizava sobre a superfície do plano – o que não evidenciava nenhum ponto de tensão e a tornava imperceptível. Agora, o peso todo recaía sobre a margem inferior do quadro, e impunha sua presença de tal modo que não era possível que os desenhos não lidassem com ela. A corporeidade e o movimento dos desenhos revelam que eles passaram a perseguir um estado de equilíbrio, meio desajeitados no início, depois quase acrobáticos.


Quando os desenhos de Célia Euvaldo foram para a tela eles já tinham adquirido maioridade. Certamente havia naqueles rastros a presença da artista, mas eles eram vistos menos por isso e mais pelo que eles próprios eram. Na tela, o óleo, uma matéria mais gorda, emprestou ainda maior adensamento. Mas o episódio decisivo foi ter alcançado legar valores distintos ao campo cromático. A artista fez ver que o branco e o preto nesses trabalhos não pertenciam a uma mesma classe de acontecimento. O branco era o espaço ocupado, o espaço físico, a própria tela; era a tela se fazendo ver como tela. O preto era o desenho, era o corpo do desenho. Nas telas Célia libertou o desenho do suporte.


A artista procedia como determinava o métier da pintura: sobre a tela imprime uma base, uma camada branca de tinta, constituindo uma superfície homogênea sobre a qual o pintor desenvolverá suas ações. No caso das telas da artista, grandes áreas de branco permanecem intocadas; também não se vê qualquer esforço de integrá-lo à ordem do fato artístico. O espaço branco, o fundo, está ali escancarado, para ser visto, mas não da mesma maneira que a área preta. As duas áreas não se relacionam, não convivem entre si, não se misturam. Cada uma delas tem suas fronteiras bem demarcadas. São superfícies que se abrigam em superfícies distintas.


O primeiro a anotar essa qualidade das telas de Célia Euvaldo foi outro artista, Paulo Monteiro; sua percepção é afiada: Os trabalhos de Célia Euvaldo, em especial os últimos [...] provocam diferentes profundidades [...]


[...] As formas negras, um pouco como o óleo quando cai na água, não se misturam com o branco da tela. Esse branco fica como uma espécie de fundo para a figura negra que o percorre, só que um tipo de fundo diferente, pois não tem profundidade [...]


A grande conquista desses trabalhos fica sendo essa: que não é mais imperativa a busca que procura tornar compatíveis coisas incompatíveis, e, embora não aparentem, eles falam disso como uma condição positiva e essencial para o seu próprio surgimento.


A importância da impressão de Paulo Monteiro não se restringe ao fato de perceber e registrar o fenômeno, mas principalmente em ver como conquista o que muitos veriam ser uma falta: a ausência de uma unidade no plano.


Os materiais utilizados certamente contribuíam para configurar o estatuto daquela diferença. O branco é tinta acrílica, o preto, óleo. A tinta acrílica é mais fluida e estabelece campos homogêneos. O óleo é mais denso e constitui relevos em seu percurso. Entretanto, isso não é condição suficiente. Certamente essas mesmas materialidades estruturadas em modos distintos poderiam perfeitamente construir um plano integrado. E tendo em vista a tradição da pintura, era de se esperar que elas cumprissem esse enredo. Mas Célia não alojara seu trabalho em tela para constituir um acontecimento pictórico, sua prática continua coadunada com seu percurso anterior. Assim, toda a sedimentação produzida ao longo de sua trajetória é convocada para fazer valer a mesma vontade: fazer ver um desenho. O curioso é que ela faz ver o desenho por intermédio da ação da pintura.


Desenho e pintura pertencem ao âmbito do ver, mas o ver que cada um promove não é da mesma ordem. O historiador da arte alemão Heinrich Wölfflin desenvolveu, com base, entre outros fatores, na percepção das particularidades manifestadas pela linha e pela pincelada, duas categorias de estilo, para distinguir a arte clássica e a barroca, nomeando-os respectivamente de linear e pictórico. Vejamos um de seus exemplos.


Quando Dürer ou Cranach colocam o nu como um elemento luminoso sobre um fundo preto, os elementos permanecem radicalmente separados: fundo é fundo, figura é figura, e a Vênus ou a Eva que vemos diante de nós têm o efeito de uma silhueta branca sobre uma folha preta. Em contrapartida, quando Rembrandt pinta um nu sobre um fundo escuro, a luminosidade do corpo parece emanar naturalmente do escuro do espaço; é como se tudo tivesse a mesma origem.


No primeiro caso a linha contorna os corpos e expressa vigorosamente o limite de cada um deles. Já na pintura de Rembrandt, a pincelada reúne as diversidades, a figura e o fundo, constituindo mesclas de naturezas. Na gramática do ver, o desenho separa, funda individuações. A pintura junta, constrói relacionamentos. A pincelada tem potência para expandir, entremear; pratica relações e estende contextos. Em contrapartida, uma linha possibilita abraçar, fechar; alinhava um campo gravitacional, perfaz um dentro. Quanto mais a linha cerca e amarra, mais ela separa e isola. O cuidado extremo de Célia Euvaldo, para que as extremidades de seus desenhos não se tocassem, advém daí. Visava impedir que se formulasse uma natureza interna à linha.


De modo geral, a natureza do desenho é separar. A partir de sua atuação é possível tornar distante aquilo que está próximo, ou próximo o que está distante. Se uma imagem apresenta a figura de objetos próximos entre si e enfatiza seus contornos, ela distancia uns dos outros. Entretanto, o desenho também tem o poder de instalar lado a lado coisas que estão radicalmente distantes, elementos que não pertencem a uma mesma ordem. Ele reúne, separando. Nesse sentido, deve-se notar que a ação do desenho no imaginário pré-renascentista e renascentista não opera somente separações, também permite reunir aquilo que não poderia imediatamente conviver. É o caso da figura e do fundo, que, naquelas telas, não pertencem a uma mesma realidade. O desenho na pintura clássica separa, justamente para reunir.


A natureza da pintura é reunir, unificar, mas Célia Euvaldo a convoca para separar, para dividir o que não pode ser dividido. Ela inverte uma operação realizada nos primórdios da história da arte. Lá, para se reunir era preciso separar. Em seus desenhos sobre tela, para separar ela procura reunir.


O que nas telas a pintura reúne? Primeiro, a superfície do desenho com a superfície em que ele se apóia. Na superfície de ambos a matéria tinta está presente, e assim eles fazem um mesmo fato. Depois, as variadas gestualidades da artista, seguindo, voltando, indo para cima, para o lado, para baixo. Todos os movimentos incorporados à tela tendem a ser vistos como algo que se agrega entre si, como algo que perfaz uma unidade.


O que o desenho separa? A pintura da pintura. O acontecimento em preto é mostrado como pertencente a uma determinação distinta. O preto não admite que o branco se faça presente em qualquer parte de seu interior. O branco é só um fato que está atrás. Ao jogar o branco para trás, o preto torna marcante suas margens, que, por sua vez, desenvolvem uma pressão em sentido contrário, para o interior, ocasionando que as inúmeras pinceladas, ou traçados, tornem-se muito mais soldadas entre si. Com isso, obriga-nos a ver não uma série de ações individualizadas, mas atos que formulam um único episódio, um único corpo. Em decorrência dessa objetivação, dessa unidade inscrita na tela, o desenho prescinde da corporeidade da artista para lhe dar sentido. As variações dos traçados já não são percursos do fazer, são somente a aparência por meio da qual o desenho se mostra.


Por último, a superfície do desenho é separada da superfície da tela. Se o preto, assim como o branco, é uma superfície, mas uma superfície que, embora ao lado do branco, não se mistura com ele, ambas podem ser superfícies contíguas, mas não a mesma superfície. A ação de Célia Euvaldo ergueu uma região de fronteira entre uma e outra. O preto é o corpo do desenho. O branco é o contexto do desenho, o seu mundo, a tela.


Após vê-lo reunido e separado, posso ver o desenho mostrando-se como desenho: vejo o desenho e a margem que separa o seu mundo do nosso mundo. Se alguém me alerta que essa realidade que eu vejo esteve sempre ali, nos desenhos de fases anteriores, eu pergunto como isso é possível, se eu não a via? Se existia, e não se podia vê-la, ela não existia como realidade do ver.


A artista até poderia tomar a existência dessa realidade como um dado. Mas, efetivamente, isso não era verdadeiro. Uma realidade impedia esse ver. A realidade do hábito. Foi preciso mudar sua rotina, trocar o papel pela tela e tratar a tela como um equivalente do papel, para que eu visse que um mundo de superfície pode ter uma outra superfície, com a mesma superfície.


E o que estes desenhos mostram? As suas idiossincrasias. Um desenho do Amilcar de Castro é um desenho determinado, nasce para construir, para fazer. Os desenhos da Célia nascem para se fazer. Eles são cheios de dúvida, não têm qualquer potência, não apresentam qualquer decisão, vão e voltam insistentemente, repetindo, reiterando, não objetivando nada, sem telos algum; ao fim, realizam algo extraordinário, se fazem existir.


Eles existem. Têm a sua própria corporeidade. Vivem a seu modo, em seu mundo prosaico. Movem-se, quase que simplesmente, explorando a gravidade e as margens do quadro. Nas telas onde a área branca é ampla, eles fundam um extenso repertório de movimentos. Nas telas onde a área branca é diminuta, trata-se de exibir a sua massa, seu volume. Novamente, a pintura intervém: é preciso separar parte do corpo de um mesmo corpo para que eu possa ver uma espessura; e Célia se torna colorista, separa o preto do preto. Sobre a superfície volumosa ela escava o preto, raspa uma grande área da massa de tinta, causando uma impressão de cor cinza, justaposta ao preto. Esse novo fato também não se individualiza, o mesmo sistema de pressão exercido pelas margens integra a gestualidade no mesmo corpo. E o cinza que enxergamos, mesmo sendo uma superfície com menor massa, aparece como sobreposto ao preto. Sendo jogado para trás, o preto se estende ao fundo, constituindo um corpo parrudo, pelo realce das impressões de volume e de peso.


O movimento mais recente da artista é estender a possibilidade de sua poética. Fazer ver uma gama de assemelhados, ainda não vistos. Utilizando-se de seu sistema, ela introduz uma nova questão do território dos indiscerníveis. Telas: onde tanto o fundo como o corpo do desenho se fazem na coloração branca. Enquanto a tinta acrílica branca se mantém em seu lugar, a tinta óleo preta cede seu lugar ao óleo branco. Os eventos se repetem. O branco se dissocia do branco. O branco se sobrepõe ao branco. O branco empurra o branco para trás, para perto do branco. O branco funda volume e massa. Nestes quadros a ação pictórica é, igualmente, imperativa, é ela que promove ver diferenças de cor, no âmbito de um mesmo elemento cromático, fundando distâncias entre elementos que se abrigam na proximidade.


Seus trabalhos são superfícies vistas pelo prisma da superfície; a pintura e o desenho se entrelaçam para participar da resolução de vários problemas de indiscernibilidade na instância do ver: uma obra se mostrando na sua condição de obra, uma superfície se mostrando como superfície, uma cor se distinguindo da mesma cor, uma ação se mostrando como ação, um indistinto se mostrando como um indistinto e ainda assim se distinguindo.


Sempre que olho uma obra de arte, sorrateiramente lhe lanço um desafio, uma única pergunta para saber de seu valor: o que está aqui e que antes não podia estar? É uma questão proveniente da minha lógica do entre. Matisse dizia de um outro modo: “A importância de um artista mede-se pela quantidade de novos sinais que tiver introduzido na linguagem plástica”.


Ao fim, seja na arte, seja na dimensão da própria vida, o que efetivamente importa é se algo se fez real. E a realidade destes desenhos é algo que não se pode pôr em questão.



Texto publicado no livro Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008

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