A produção de Célia Euvaldo flerta com a ideia de autenticidade, na medida em que explora relações de equivalência entre gesto, matéria e imagem. A espessura e a rugosidade da tinta determinam a qualidade das manchas; a extensão do movimento modula as formas pintadas; a posição e a dimensão da tela em relação ao corpo da artista limitam a possibilidade de calcular a composição da obra como um todo, e assim por diante. Forma-se assim uma espécie de sintaxe que recombina alternadamente conjuntos predeterminados de variáveis.
Dentro dessa sintaxe, pode-se tanto acreditar que a intencionalidade das obras já está conformada antes mesmo de sua produção – pois estrutura-se no momento em que a artista define parâmetros como escala, material, duração e extensão do gesto –, quanto apostar que o verdadeiro determinante está em tudo aquilo que escapa do que pode ser pré-estabelecido – o acaso do escorrimento da tinta, a textura presente na sobreposição de duas camadas, as linhas que aparecem quando o gesto é interrompido por um breve instante. A distância que separa a valorização das regras do jogo e a atenção para o imprevisto é justamente por onde pode esparramar-se o olhar inquieto do público.
É também essa a distância que aparece multiplicada na presente experiência de Célia Euvaldo. Ao invés do papel e da tela, seus suportes mais constantes, a artista resolveu pintar diretamente sobre as paredes de uma sala do Instituto Tomie Ohtake. O que já era “grande formato” em suas obras de, digamos, três metros de largura agora converte-se em uma imensidão, com mais de meia centena de metros de extensão. Trata-se de uma mudança significativa de escala, que coloca em evidência o desafio que sua pintura lança ao olhar do espectador – o público terá de caminhar por um espaço maior do que muitas casas e apartamentos à procura de visadas gerais e particularidades de cada grafismo. Será então possível compreender todas as paredes como uma só obra, ou cada aglutinação de gestos pictóricos será percebida como um corpo posicionado no espaço?
O trabalho também enfrenta um desafio técnico, que exige da artista uma adaptação em seu repertório de materiais, ferramentas e gestos. A tinta óleo recorrente em sua produção recente dá lugar à tinta acrílica, a qual é aplicada de forma densa, recusando sua tendência à aquosidade. A vassoura que usualmente aplica as camadas de tinta sobre a tela apoiada no chão é trocada por um modelo mais amplo, de um metro e vinte de largura, o qual se lançará diretamente sobre a parede, alcançando grandes alturas com a ajuda de um andaime. Com essas mudanças, a gestualidade que caracteriza a pintura de Célia Euvaldo poderá transformar-se, uma vez que o peso e os limites de seu corpo estarão em constante confronto com a imensidão dos planos verticais. Assim, conseguirá a energia condensada em suas manchas manter-se canalizada em faixas mais ou menos homogêneas e ortogonais ou seus gestos procurarão por desvios?
Por fim, existe nesta nova obra um esgarçamento da temporalidade dos trabalhos da artista. Usualmente, a duração de suas obras coincide com uma sequência de movimentos limitados pelo tempo de secagem da tinta e, por isso, os traços produzidos funcionam como pegadas ou instantâneos de uma quase-coreografia. Para abarcar as dimensões da sala de exposições será necessária a combinação desses passos compactos em uma série de momentos distribuídos ao longos dos dias de realização da obra. Por isso, enquanto cada pintura da artista parece análoga à notação de um acorde musical, a totalidade da sala poderá constituir uma partitura completa. A dúvida, nesse caso, recai sobre como se dará a contiguidade entre suas partes. Elas poderão estar encadeadas ou em contraposição e, com isso, poderão constituir um panorama de acontecimentos simultâneos ou uma narrativa dotada de pontos de viradas, curvas dramáticas e momentos de silêncio.
Talvez, tudo funcione como um peça de Samuel Beckett – um movimento sem desenvolvimento, narrativa frustrada pela irremediável inconsequência da vida. Ou quem sabe, insinue-se de forma sinestésica a polifonia de um arranjo eletroacústico. Também pode acontecer de o espaço funcionar como um livro de contos, recombináveis de acordo com a deriva do espectador pelo espaço. A verdade é que no momento em que este texto é escrito, antes da realização da obra, essas são apenas conjecturas. O corpo-a-corpo da artista com o espaço irá lidar com essas equações e só você, visitante, poderá resolvê-las.
Texto publicado originalmente no fôlder da exposição “Sobre parede”, Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, 2013